Por Soraya Santucci Chehin
“A primeira coisa a fazer é matar todos os advogados”. A sugestão dada ao líder rebelde irlandês Jack Cade há quase 600 anos, dramatizada e imortalizada por William Shakespeare na segunda parte da peça Henrique VI, é um bom termômetro sobre como os advogados são vistos por aqueles que não querem encontrar resistência para impor suas ideias, bandeiras ou visões de mundo.
Historicamente, o advogado é tido como o profissional que milita contra o desmando, que se eleva diante de injustiças e usa o ordenamento jurídico para defender, em última instância, a sociedade. É reconhecido, por exemplo, o papel de liderança que a Ordem dos Advogados do Brasil exerceu na luta pela redemocratização do país em um passado recente. E o advogado pratica essa conduta porque entende que quando o direito de um cidadão é colocado à prova, todos os cidadãos perdem. Logo, a sociedade começa a correr riscos. O direito individual é, em última análise, o direito de todos e de cada um.
No caso da advocacia pública, esse fato é ainda mais intrínseco ao trabalho do advogado. Em uma sociedade como a brasileira, em que, infelizmente, a noção de patrimônio público padece de clareza e onde, culturalmente, o que é público e o que é privado ainda se misturam de forma pouco republicana, os profissionais responsáveis por defender o patrimônio dos cidadãos são cada vez mais demandados. E sua responsabilidade é enorme. No caso dos procuradores do Município de São Paulo, esse trabalho é gigantesco.
São 374 procuradores do município em atividade na cidade de São Paulo, responsáveis pelo manejo de centenas de milhares de processos que abrangem desde a defesa do meio ambiente e da legislação urbanística, passando pela cobrança de tributos e outras dívidas à consultoria jurídica para todos os projetos elaborados e efetivados pela prefeitura. Atrás de cada nova ação da municipalidade, de qualquer assunto que afeta diretamente a qualidade de vida na cidade de São Paulo, há o estofo jurídico que lhe dá segurança para que o trabalho seja feito. A carreira de procurador é uma carreira de Estado. Logo, não tem vinculação partidária e segue os mesmos princípios independentemente da coloração partidária do mandatário do momento.
Hoje, um dos mais importantes e significativos trabalhos dos procuradores paulistanos é a cobrança da dívida ativa, tributária e não tributária. Essa competência é prevista na Constituição Federal e na Lei Orgânica do Município de São Paulo. Como sabem até mesmo os estudantes dos primeiros semestres do curso de Direito, o regime de cobrança tem duplo objetivo: garantir a efetividade da arrecadação e, ao mesmo tempo, assegurar que cidadãos e empresas só tenham seu patrimônio apropriado para o pagamento de dívidas após o devido processo legal. Isso é salutar, em qualquer regime democrático.
Cobrar essa dívida, sobretudo em razão da existência de diversos meios, jurídicos e não jurídicos, para não pagá-la ou para postergá-la, é uma tarefa árdua, mas que, quando bem sucedida, traz uma satisfação enorme a quem vive de defender o patrimônio do contribuinte paulistano.
Não são poucos os casos em que a Procuradoria Geral do Município de São Paulo obteve significativas vitórias em favor do paulistano, seja ele nascido ou adotado por nossa metrópole. Há incontáveis exemplos de êxito.
Um dos mais marcantes talvez seja o processo de cobrança do Jockey Club de São Paulo, um dos mais notórios devedores de IPTU da cidade. O Jockey Club foi proprietário de grandes imóveis localizados em áreas nobres de São Paulo, como o da Rua Boa Vista, local de sua sede social e de seu famoso restaurante. Também era dono da conhecida Chácara do Jockey, localizada na região da Vila Sônia, e do Hipódromo de Pinheiros. Somados, os imóveis tinham débitos de quase R$ 200 milhões.
A estratégia de cobrança desses valores foi uma ação marcante. Além da penhora sobre os respectivos imóveis, a Procuradoria Geral do Município atuou para penhorar os valores decorrentes dos mais variados eventos realizados no Hipódromo do Jockey. Além disso, houve a penhora no rosto dos autos em uma ação movida pelo Jockey contra a Sabesp, cujos depósitos eram de valores altíssimos. Também é importante destacar a atuação quando do anúncio do leilão realizado para venda do imóvel localizado na Rua Boa Vista, no sentido de resguardar o crédito do município de São Paulo. Toda essa atuação estruturada obrigou o Jockey a aderir a diversos parcelamentos, resultando em uma recuperação recorde de valores aos cofres públicos da cidade.
Em 2014, a fim de atender a um pedido dos moradores do bairro de Vila Sônia/Butantã, a Prefeitura iniciou o processo de desapropriação do imóvel chamado Chácara do Jockey. Em um esforço conjunto de diferentes órgãos da Procuradoria Geral, os parcelamentos do Jockey Club foram quitados com a indenização a ser paga pela desapropriação da área. Em razão desse encontro de contas, a cidade ganhou um dos mais belos espaços públicos e de área verde que se tem notícia.
É por conta de ações desse gênero que a Procuradoria Geral do Município de São Paulo se orgulha de exibir dados que atestam que ela é notoriamente uma das mais eficientes do país. Na União, por exemplo, a arrecadação é, proporcionalmente, cinco vezes menor. O quadro se repete Brasil afora. São raros os casos em que o percentual de recuperação da dívida passa de 1%.
Por isso é que a notícia de que a Câmara Municipal de São Paulo iria instalar uma CPI para investigar os grandes devedores do município foi recebida com simpatia pelos procuradores municipais no começo do ano. A ideia de ter o parlamento paulistano ao lado da procuradoria para encontrar meios de fortalecer a defesa do erário foi motivo de comemoração de muitos colegas.
Contudo, após cinco sessões da CPI dos Grandes Devedores terem sido feitas, as empresas que devem bilhões ao município não foram convidadas a depor perante os parlamentares paulistanos. Os vereadores falaram, em mais de uma ocasião, que a dívida ativa da cidade ultrapassa R$ 90 bilhões e que mais da metade desse débito é oriundo da falta de pagamento de tributos por parte de poucas e grandes empresas.
Ora, por que, então, ainda não foram convocados a falar na CPI os representantes das empresas devedoras para saber os motivos dessa inadimplência estratosférica? Qual o motivo que provoca o atraso no pagamento de tributos? Seria uma excelente oportunidade de conhecer as razões pelas quais grandes empresas deixam de cumprir com obrigações tributárias e, inclusive, para cooperar com a atuação da Procuradoria Geral na cobrança dos grandes devedores.
Soraya Santucci Chehin é presidente da Associação dos Procuradores do Município de São Paulo.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 7 de abril de 2017, 7h34