Mudança no abuso de autoridade não pode ir contra interesses da sociedade

Por Carlos Henrique Abrão

A Lei 4.898/1965, que disciplina o abuso de autoridade, encontra-se em vias de ser alterada pelo Congresso Nacional, ao fundamento de estar obsoleta e de não prever hipóteses concretas e materializadas nos procedimentos da Justiça em geral e na aplicação de sanções correlatas.

Dissociado o Parlamento e desautorizado da vontade e soberania populares, o que se tem visto ultimamente é a consagração da impunidade: a tentativa de se manter a todo custo o foro privilegiado no emblemático e padronizado mecanismo da imunidade parlamentar.

Não bastasse a completa desfiguração de emenda popular das 10 Medidas Anticorrupção, com 2 milhões de assinaturas, discute-se no Parlamento formas de intimidação, ameaça e reinterpretação da norma penal para que delegados, promotores e juízes não se sintam encorajados, mas sim amedrontados, por qualquer perspectiva de enquadramento no Projeto de Lei encaminhado pelo Senado, a ser votado.

Os argumentos parlamentares inconsistentes se hospedam na existência protetiva do espírito corporativo para manter firme a posição de um suposto abuso de autoridade, sempre que a interpretação do caso concreto estiver distante de precedentes ou não se amparar em jurisprudência dominante, mediante conceitos vagos e abstratos, o que somente arrefeceria toda e qualquer possibilidade de um combate sem trégua contra a famigerada corrupção.
E nessa quadra da história parlamentar, impregnada de escândalos, repleta de delações premiadas, revestida do desvio do dinheiro público e na proximidade das eleições de 2018, agudizada a pior crise econômica do nosso cenário do último século, não se justifica de forma alguma a incursão pelo recrudescimento para minar a Polícia Judiciária, intimidar o Ministério Público e acantonar o papel fundamental, em qualquer democracia desenvolvida, do Poder Judiciário.

O projeto criminaliza inúmeras condutas, como divulgar gravação sem relação com a prova, grampos ou escutas desprovidos de autorização judicial, prorrogação da investigação detrimentosa ao investigado e quando houver disponibilidade de ativos financeiros que extrapolem o valor estimado para a satisfação da dívida, chegando ao não fornecimento de cópias da investigação para fins de defesa do investigado.

A temperatura e o momento políticos hoje vivenciados revelam amiúde idiossincrasias e vicissitudes que são tipicamente de reserva mental e de evidente desvio de finalidade para se projetar, por intermédio da reforma da Lei de Abuso de Autoridade, um engessamento, camisa-de-força, verdadeira mordaça que, sem sombra de dúvida, visa ao menos pôr cobro ao destemor das principais investigações e especialmente daquela fundamental, nascida há três anos e conhecida internacionalmente como operação “lava jato”.

Os representantes do povo, pelo que se constata, ainda não se conscientizaram do clamor popular contra o divórcio entre o discurso e a realidade e reformas em andamento tolhendo direitos sociais adquiridos, querendo no apagar das luzes votar projetos de menor importância quando outros tramitam pela Casa há mais de uma década.

E a única reforma que se entende inadiável, imprescindível e substancial, é aquela político-partidária, considerando que o Brasil possui o maior número de partidos políticos do planeta, mas, na realidade, trata-se de siglas que desservem o exercício pleno da democracia.

Não havendo sucesso das entidades de classe em aprimorar, aperfeiçoar e abrir os olhos do Congresso Nacional, em atenção à votação da Lei do Abuso de Autoridade, seguramente as investigações em andamento poderão tomar novo rumo ou mesmo cessarem, como é do desejo da maioria dos denominados representantes do povo.

E nessa circunstância da aprovação da redação original do projeto que disciplina a nova Lei do Abuso de Autoridade, cumprirá ao Supremo Tribunal Federal reconhecer, desde logo, as inconstitucionalidades que fragmentam o ordenamento jurídico, infirmam a persecução penal e, mais grave ainda, escancaram as portas da corrupção de modo desabrido para o viés da intimidação e da impunidade generalizada.

O Congresso Nacional, desacreditado, distante dos anseios da sociedade civil, caminhando na contramão da História, sepultará de uma vez por todas as esperanças de um novo amanhã, se vier a aprovar tal como está o projeto que envolve o abuso de autoridade, em plena sintonia com a completa desconfiguração das 10 Medidas Anticorrupção.

Esse verdadeiro braço de ferro entre o Parlamento brasileiro e a sociedade civil, sem a menor dúvida, espalhará seus reflexos para a economia e também no sentido das eleições presidenciais marcadas para o ano de 2018.

O desbaratamento de quadrilhas, do crime organizado e de verdadeiras facções criminosas nos municípios, nos estados, na União, em sociedades de economia mista, empresas públicas, paraestatais e fundos de pensão, chegou à exaustão e ao exaurimento de um modelo, cujo resultado de repulsa pela sociedade civil deveria ser a tônica daqueles parlamentares que pretendem continuar nos seus cargos nas eleições de 2018.

A reformulação ideológica de uma lei distante do seu tempo não poderá se constituir ao arrepio dos interesses da sociedade civil, de um ponto de equilíbrio, de um denominador comum, sob pena de construirmos uma blindagem intransponível daqueles que sucumbem diante dos princípios da moralidade e honestidade da Administração Pública.

O descomprometimento no nosso Parlamento com a crise plural do Brasil servirá de reflexão de um ponto fora da curva, do estrangulamento de um modelo, isto porque a democracia é a luta incessante pela repercussão do Estado de Direito e não a implantação de exceções como regra de ataque aos procedimentos penais e à responsabilização de autoridades incompetentes e sabidamente desonestas.

Carlos Henrique Abrão é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e professor pesquisador convidado da Universidade de Heidelberg (Alemanha). Tem doutorado pela USP e especialização em Paris.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 9 de abril de 2017, 11h30